quarta-feira, 19 de outubro de 2022

LATÊNCIA/AUTOFAGIA

LATÊNCIA

a chuva cai perenemente como
a infinda sensação de gosto amargo
em fluxos corrosivos de passado
composto do que nunca foi presente
ou foi porém agora é tão somente
como chuva invernal sobre o gramado
ressecado e o canteiro abandonado
assim como o fantasma entre os silentes
pedaços de concreto e alvenaria
da casa que jamais foi concluída
ou sempre foi morada verdadeira
do vento e a chuva e a lama e a noite e o musgo
e a árvore que nunca teve frutos
e o sonho que não pôde ver estrelas

AUTOFAGIA

uma árvore cresce entre os entulhos
de tudo o que não foi amanhecido
estendendo seus galhos ressequidos
como dedos gigantes pelo escuro
a raiz cresce imensa como um fungo
cresce hifas profundas na carniça
e transforma o concreto da ruína
num amálgama líquido de tudo
aquilo que foi sonho e agora é nada
além da seiva bruta enlameada
correndo lentamente no xilema
dos galhos ressequidos como dedos
gigantes pelo escuro se estendendo
em agônica busca por estrelas

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