noite de natal

noite de natal —

toda a estrada iluminada

com luzes vermelhas

no fim do sonho

no fim do sonho

o barulho da mosca

presa na teia

os cães latindo

os cães latindo —

no telhado vizinho

vulto de gato

somente a luz

somente a luz

dos besouros de fogo —

noite nublada

um grilo morto

um grilo morto

boiando na piscina —

tarde de outono

sol escaldante

sol escaldante —

numa poça da rua

bicos-de-lacre

Bashō: 物ほしや袋のうちの月と花

apenas isso

desse saco desejo —

luas e flores

acrescentando

acrescentando

mais uma primavera —

o som da chuva

tarde de sol

tarde de sol —

na piscina uma rã

gatos na borda

com lábios roxos

com lábios roxos

e garrafa vazia —

noite gelada

de novo escuto

de novo escuto

o relógio da sala —

um novo dia

Hilaire Belloc: When I am dead

When I am dead, I hope it may be said:
'His sins were scarlet, but his books were read.'

***

Tendo a morte chegado,

que de mim falem sempre:

"Indecentes pecados,

mas obra incandescente."

o desconforto da palavra não

o desconforto da palavra não

entregue no momento desejado

a palavra desfeita como um laço

desfeito no sapato quando em casa

se chega com a sola enlameada

e o corpo impregnado de cansaço

a palavra que apenas num pedaço

de pensamento foi pronunciada

e nunca fez caminho para as cordas

vocais e para o ouvido que se importa

escutá-la a palavra que não some

mas apenas existe como um eco

do silêncio que é sempre manifesto

quando escuto a pronúncia de teu nome

DOS SINTOMAS DA MORTE

I

tudo tem voltas

                 aspirais

                 torcimentos

ângulos inconstantes e impossíveis

dos olhos seguirem propriamente

há sempre algo oculto da vista

algo além que surpreende

até mesmo o pessimista

II

o ritmo dos passos

não sofre de medo ou

                     ansiedade 

os pés não buscam novo solo

buscam apenas seguir 

     em frente apenas o 

           movimento 

                  sem receios

de encontrar mais um abismo

III

o que poderia ter sido o amor

   não poderia 

      realmente

          ter sido

o coração nunca teve porta

para todos sempre foi

apenas uma pedra

IV

envelhecer

não é domínio do tempo

é um espaço vazio

           expandindo

     continuamente

o tempo parou

não há mais aniversários

Shiki: 柿喰の俳句好みしと傳ふべし

sobre mim digam

gostava de haicais

e de caquis

cummings: how tinily of

how

tinily

of

squir(two be

tween sto

nes)ming a gr

eenes

t you b

ecome

s whi

(misterious

ly)te

one

t

hou

***

do

peque

no

enros(duas en

tre sei

xos)que com

o ver

de tu t

e con

ver

(misté

rio)te

s

bran

ca

Bashō: 鐘消えて花の香は撞く夕哉

aroma das flores

ao calar das badaladas —

encerro da tarde

Issa: 年木樵る女親あり子なき哉

uma mãe corta

a lenha de ano novo —

o filho ausente

Ransetsu: 一葉散る咄ひとはちる風の上

uma folha cai

arrá — mais outra sucumbe

ao sopro do vento

DOIS HAICAIS DO DIA DE FINADOS

três nomes inscritos

acompanham mesma data —

dia de finados

***

na fotografia

eu no colo de meu vô —

dia de finados

CANÇÃO IV

pelas ruas estreitas de ladrilhos

seguindo a luz vibrante dos letreiros

eu cruzo a madrugada sem desejo

por nada além de ter adormecido

mas sigo com as pernas bem despertas

buscando talvez vício pelo tempo

apenas me trocando de travessa

enquanto o sol não pousa em meus cabelos

eu vago reticente como o vento

sem nenhum indo a múltiplos destinos

pelas ruas estreitas de ladrilhos

seguindo a luz vibrante dos letreiros

uma gaivota

uma gaivota

estática no ar —

vento nordeste

um parapente

um parapente

cruzando o pôr do sol —

brisa salgada

o som da chuva

o som da chuva
cessando — do silêncio
a corruíra

o bem-te-vi

o bem-te-vi

três manhãs sem cantar —

chuva de outubro

uma formiga

uma formiga

perdida em minha mão —

noite gelada

folha vermelha

folha vermelha

no caneco de chopp —

vento de outono

***

ビアマグに紅葉ありや秋の風

biamugu ni

kōyō ari ya

aki no kaze

Bashō: さざれ蟹足這ひのぼる清水かな

um sirizinho

subindo minha perna —

a água fresca

grilos cantando

grilos cantando

no lote abandonado —

a lua cheia

na mesa ao lado

na mesa ao lado

folheando o cardápio —

vento de inverno

Quatro haicais desconfortáveis (III)

gatos brincando —

um sapo na calçada

sem duas pernas

***

sem duas pernas

um sapo se arrastando —

trilha de sangue

***

salto da gata —

um passarinho sobe

um outro desce

***

a minha gata

dormindo no sofá —

penas no chão

o som da porta

o som da porta

paralelo ao relógio —

vento de inverno

chega a primavera

chega a primavera —

na roseira florescendo

os pulgões se fartam

***

é primavera —

na roseira florindo

pulgões se fartam

e no varal

e no varal

uma gota suspensa —

casa invertida

vidro embaçado

vidro embaçado —

só a luz dos trovões

e dos faróis

pingos tremendo

pingos tremendo —

na roseira uma aranha

remenda a teia

varal de luzes

varal de luzes —

somente a multidão

de pernilongos

Shiki: 紅梅の落花をつまむ疊哉

duma ameixeira

pego as flores vermelhas

sobre o tatame

e na calçada

e na calçada

uma marca de tênis —

cheiro de fezes

apenas o canto

apenas o canto

do sabiá — de repente

alarme de carro

na luz poente

na luz poente

andorinhas passando —

rua deserta

Anita Virgil: walking the snow-crust

walking the snow-crust

not sinking

sinking

***

crosta de neve —

ando e ando e

afundo

o sol difuso

o sol difuso

na janela embaçada —

manhã de inverno

ainda mais branca

ainda mais branca

amanhece a rosa branca —

geada na serra

tarde de inverno

tarde de inverno —

no muro os caracóis

ainda dormem

entre o poente

entre o poente

e as primeiras estrelas —

lua crescente

manhã de inverno

manhã de inverno —

aos poucos sobre a cama

a minha sombra

ao pôr do sol

ao pôr do sol

cruza a rua da orla —

sombra de mastros

noite de inverno

noite de inverno —

gatos miam na porta

querendo entrar

cair da noite

cair da noite —

uma estrela no céu

e depois outra

de cesto em cesto

de cesto em cesto

de lixo vasculhando —

o som das latas

Issa: 湖や鴛の側ゆく夜這星

na lagoa passa

entre patos-mandarim —

estrela cadente

final de tarde

final de tarde —

sol no topo das ondas

resplandecendo

céu da madrugada

céu da madrugada —

somente a janela acesa

no prédio vizinho

Chiyo-ni: 拾ふものみな動くなり潮干潟

a maré baixa —

o que quer que se pegue

se movimenta

longa viagem

longa viagem —

se acumulam haicais

que não escrevo

tanabata

tanabata —

só a estrela da tarde

compareceu

Hekigotō: 石垣に鴨吹きよせる嵐かな

apinha patos

contra o muro de pedra

a tempestade

Gyōdai: くらきよりくらきに帰るなまこかな

da escuridão

e para a escuridão —

lesma-marinha

risco no céu

risco no céu

inteiramente azul —

um avião

densa folhagem

densa folhagem —

do alvoroço das aves

somente o som

beira da estrada

beira da estrada —

medram no matagal

as margaridas

Issa: 寒月やむだ呼されし座頭坊

a lua cheia —

em vão foi convidado

um monge cego

CANÇÃO III

uma caixinha de música

com seu pente quebrado

uma canção de ninar

de silêncio alongado

imensidão que se cala

um abismo escavado

e uma canção de ninar

ecoando nos lados

uma morada no fundo

os olhares tombados

e uma canção de ninar

nos semblantes calados

Shiki: 名月の出るやゆらめく花薄

ondulações

sob a lua que nasce —

capim-dos-pampas

resto de sol

resto de sol

espalhado no céu —

nuvens esparsas

Uetsuka: 涸滝を見上げて着きぬ移民船

chegando enxergo

uma cascata seca —

nau imigrante

longa avenida

longa avenida —

os carros no horizonte

quase na lua

Dakotsu: なきがらや秋風かよふ鼻の穴

pelas narinas

circula no cadáver —

brisa de outono

chuva de verão

chuva de verão —

um morro de cada vez

desaparecendo

Issa: 雪とけて村一ぱいの子ども哉

a neve derrete

e o vilarejo se inunda

porém de crianças

Chiyo-ni: 秋風の山をまはるや鐘の声

vento de outono

circula na montanha —

o som dos sinos

Bashō: 朝茶飲む僧静かなり菊の花

monges bebem chá

em silêncio absoluto —

flores de crisântemo

***

em silêncio o monge

bebe chá pela manhã —

flores de crisântemo

[tradução alternativa]

a calmaria

a calmaria —

um v de mergulhões

também no mar

porta de vidro

porta de vidro —

assisto à mariposa

pousar na lua

Uma versão em japonês:

ガラス戸や蛾の着陸を月に見る

garasudo ya

ga no chakuriku o

tsuki ni miru

Uma outra versão (sugerida):

蛾の月へ着陸したりガラス窓

ga no tsuki e

chakuriku shitari

garasumado

UM HAICAI EM "ISMÁLIA"

O poema "Ismália" de Alphonsus de Guimaraens é um dos mais famosos da nossa literatura. Em especial, um dos mais famosos do movimento simbolista. Na primeira estrofe, "Quando Ismália enlouqueceu,/Pôs-se na torre a sonhar…/Viu uma lua no céu,/Viu outra lua no mar.", acredito que há um quê de haicai e tentei construir um parafraseando os versos.

na torre a sonhar —

vê uma lua no céu

vê outra no mar

cai da tarrafa

cai da tarrafa

e corre para o mar —

siri-azul

um passarinho

um passarinho

esmagado no asfalto —

um outro canta

pombos dividem

pombos dividem

o resto da marmita —

lixo da praça

gritos de susto

gritos de susto

ao estouro do bambu —

festa junina

um de cada vez

um de cada vez

pelo buraco do muro —

filhotes de gato

ladeira deserta

ladeira deserta —

um cachorro sobe e desce

farejando a rua

noite sem lua

noite sem lua —

garças brancas encruzam

a via-láctea

Issa: 春雨や猫におどりをおしえる子

dia chuvoso —

uma criança ensina

gato a dançar

velas acesas

velas acesas —

cada brisa que passa

sacode as sombras

de mesa em mesa

de mesa em mesa

procurando farelos —

um passarinho

um peixe

um peixe

e duas gaivotas —

dogfight

pelas paredes

pelas paredes

torvelinho de sombras —

as mariposas

três badaladas

três badaladas

no relógio da sala —

todos dormindo

alvoraçado

alvoraçado

entre pretos e brancos —

pombo marrom

nada na beira

nada na beira

da piscina uma rã —

gatos na borda

uma sacola

uma sacola

atravessando a rua —

três da manhã

de trás do mar

de trás do mar

enquanto o sol se põe —

a lua cheia

rua da praça

rua da praça —

tão longa travessia

para o besouro

extenso fio

extenso fio

de teia balançando —

brisa de outono

para a calçada

para a calçada

retornam os pardais

depois que passo

também no palco

também no palco

com arismar e kramer —

lua crescente

a garça pesca

a garça pesca

na beira da lagoa —

céu estrelado

vento de outono

vento de outono —

a cerveja também

está tremendo

rua alagada

rua alagada —

atravessa comigo

quarto minguante

deita no chão

deita no chão —

o cachorro também

está cansado

o meu cardápio

o meu cardápio

no outro lado da praça —

vento de outono

somente o som

somente o som

do vento e da cigarra —

casa vazia

somam na teia

somam na teia

dezenas de mosquitos

nenhuma aranha

indo pro mastro

indo pro mastro

fugidas do cachorro —

duas gaivotas

***

rindo no mastro

do cachorro que late —

duas gaivotas

na velha figueira

na velha figueira

esperando pelo outono —

folhas amarelas

manjericão

manjericão

e em nenhuma outra flor

zanzam abelhas

um só quintal

um só quintal

o meu e o do vizinho

pra borboleta

CANÇÃO II

as dúvidas dissolvem-se no escuro

sem nenhuma questão ser respondida

e o silêncio é sintoma prematuro

de algo opaco medrando na rotina

como o mofo se espalha na parede

ou a noite devora a luz poente

ou a paz que se tem na solidão

pouco a pouco apodrece o coração

o silêncio se adensa e é mais profundo

cada passo que dou nesta descida

e as dúvidas dissolvem-se no escuro

sem nenhuma questão ser respondida

Issa: こほろぎの巣にはいつなる我白髪

quando serão

meus cabelos cinzentos

ninho de grilo

***

um ninho de grilo —

quando que se tornarão

meus cabelos brancos

[tradução alternativa]

dia de sol

dia de sol —

permanece na bota

cheiro de esgoto

até as teias

até as teias

estão abandonadas

no meu retorno

Issa: ああままよ生きても亀の百分一

se chego aos cem

um centésimo apenas

da tartaruga

gralhas na torre

gralhas na torre

de alta tensão — ao pé

vacas pastando

Bashō: 春なれや名もなき山の薄霞

chega a primavera —

e uma tênue bruma cobre

colinas sem nome

Bashō: 物いへば唇寒し秋の風

gela meus lábios

quando tento falar —

vento de outono

***

quase congela

meus lábios quando falo —

vento de outono

[tradução alternativa]

Bashō: 雪の中は昼顔枯れぬ日影哉

um dia de sol —

a trepadeira não murcha

nem mesmo na neve

Quatro haicais sobre Fujisan

amanhecendo

enquanto o sol se põe

no monte fuji

***

sol sobre mim

e luar sobre a neve

do monte fuji

***

dependurado

atrás do sushiman —

o monte fuji

***

mesmo sem ter

como ver sua neve —

fugaku hyakkei

NOTA: Fugaku hyakkei (富嶽百景) significa "cem vistas do Monte Fuji" e é o nome de uma coletânea de gravuras de Katsushika Hokusai.

luzes do brejo

luzes do brejo —

uma lua crescente

e vagalumes

por todo o horizonte

por todo o horizonte

cinza claro sobre o mar —

chuva de verão

Quatro haicais de outono (II)

talvez me ajude

a varrer a varanda —

vento de outono

***

últimas folhas

a cair na varanda

antes do inverno

***

tarde da noite —

este vento que sopra

já é de inverno

***

manhã de inverno —

e na varanda ainda

folhas caindo

da rosa ao muro

da rosa ao muro

cintila ao pôr do sol —

fio de teia

Bashō: この道や行く人なしに秋の暮

por este caminho

onde ninguém passa mais —

ocaso de outono

sinal vermelho

sinal vermelho

sem luz para avisar —

ninhos de barro

sobre o negror

sobre o negror

barulhento do mar —

céu estrelado

folhas entrando

folhas entrando

pela porta da frente —

vento de outono

do mar revolto

do mar revolto

para a nuvem de chuva

um arco-íris

mesmo quando oculta

mesmo quando oculta

pelas nuvens me acompanha —

lua de verão

em longo silêncio

em longo silêncio

a serra desaparece —

ocaso de outono

***

黙然と山並み消える秋の暮

mokuzento

yamanami kieru

aki no kure

e vai morro a baixo

e vai morro a baixo

carregando um rato morto —

chuva de verão

fundo da gaveta

fundo da gaveta —

dois suéteres furados

e meias sem par

despetalando

despetalando

roseiras do jardim —

pedras de gelo

quatro haicais de outono

assobiando

nos galhos ressecados —

vento de outono

***

farfalham juntas

nas copas e no chão

as folhas secas

***

a multitude

de sons em cada passo —

final de outono

***

o som da pinha

caindo em folhas secas —

final de outono

Shiki: 門さきにうつむきあふや百合の花

no portão de entrada

transbordando cabisbaixos —

lírios florescentes

***

junto ao portão
transbordam cabisbaixos —
lírios em flor

[tradução alternativa]

Chiyo-ni: 雨雲にはらのふくるる蛙かな

inflando o peito

para as nuvens de chuva —

pequena rã

Chiyo-ni: 鳥影も葉に見て淋し冬の月

onde vi pardal

era folha e fico só

ao luar de inverno

na perna do boi

na perna do boi

ferimento em carne viva —

moscas varejeiras

resseca junto

resseca junto

do galho de alecrim

um grilo morto

Issa: 梅がかやどなたが来ても欠茶碗

cheiro da ameixeira —

também tem para as visitas

xícara quebrada

***

cheiro da ameixeira —

também tem para as visitas

xícara de chá

[tradução alternativa]

Buson: かはほりのふためき飛ぶや梅の月

ziguezagueando

ao redor duma ameixeira —

morcego ao luar

***

voa em ziguezagues

ao redor duma ameixeira —

morcego ao luar

[tradução alternativa]

Shiki: 月も見えず大きな波の立つことよ

nem mesmo a lua

é visível — ascendem

ondas imensas

***

nem mesmo a lua

é possível de ver —

ondas imensas

[tradução alternativa 1]

***

e não se vê

nem mesmo a lua — ascendem

ondas imensas

[tradução alternativa 2]

porta de vidro

porta de vidro —

gatos caçam de um lado

moscas do outro

***

ガラス戸や中で猫狩るそとに蠅

garasudo ya

naka de neko karu

soto ni hae

depois de entrar

depois de entrar

tem mais uma surpresa —

barata alada

Issa: 古壁やどの穴からも秋の月

parede antiga —

por qualquer dos buracos

a lua cheia

Shiki: 行く我にとどまる汝に秋二つ

eu partirei

e você ficará —

dois outonos

***

eu parto
você não —
dois outonos

[tradução alternativa]

NOTA: Na primeira tradução, excepcionalmente, decidi pela métrica irregular 4-6-3, pois percebi que tentar forçar uma métrica mais regular (4-6-4 ou 5-7-5) prejudicaria o haicai. Na segunda tradução primei pela concisão sem me ater à métrica.