GASTROENTEROLOGIA

o estômago

quando sente

sente mais que o coração

águas de março

águas de março

ainda nesta poça —

lua de inverno

lar de madeira

lar de madeira —

e a trepadeira ao lado

de mesma cor

casa da infância

casa da infância —

agora moram nela

desconhecidos

CANÇÃO EM SI

lá se vão, tragados pelos ciclos

lá se vão, com tanto e tanto sono

nossos corpos, filhos do carbono

nossas almas, filhas do silício

chuva gelada

chuva gelada —

a moreia da entrada

sem novas flores

AUTORRETRATO II

sob a lua e as estrelas

uma sombra que se esgueira

sob a luz do meio dia

um silêncio que caminha

no conjunto das memórias

uma poça que evapora

no altar das esperanças

um poema posto em chamas

como coisa deste mundo

só o azul do mar profundo

como todo um universo

céu de sóis feitos de ferro

as de ontem murcham

as de ontem murcham

e as de hoje desabrocham —

moreia em flor

desce a calçada

desce a calçada

uma rosa vermelha —

doze de junho

contemplo o céu

contemplo o céu

vagando meu olhar

entre as estrelas

talvez encontre o seu

pousado sobre a lua

CANÇÃO V

da terra que parti depois da infância

eu carrego na palma envelhecida

um punhado luzido da memória

mas não sei mais falar a sua língua

e sinto uma distância irreparável

e uma voz sussurrando nostalgias

num canto luminoso da memória

mas não sei mais falar a sua língua 

da terra que deixei na minha infância

toda a felicidade que sentia

é apenas um punhado de memória

e não sei mais falar a sua língua

churrasco na praça

churrasco na praça —

entre a fumaça e as estrelas

uma garça branca

tarde de outono

tarde de outono —

uma pilha de louça

depois banheiro

o céu inteiro

o céu inteiro

na bolha de sabão —

                ...blop

uma cartinha

uma cartinha

entregue no presente

de aniversário

em tanto tempo ainda

um resto de perfume

Buson: 帛を裂琵琶の流や秋の声

rasgo de seda

a torrente do biwa —

a voz do outono

Esse haicai aparece no fim do haibun "Visita a Uji". Logo antes dele, Buson comenta um poema chinês de Po Chü-I, onde esse faz uma metáfora para o som do biwa (uma espécie de alaúde com cordas de seda e escrito como 琵琶). Aqui, no entanto, Buson está perto do Rio Uji, o qual recebe águas do Lago Biwa (que é também escrito como 琵琶). Isso abre as possibilidades de interpretação e a ambiguidade provavelmente é proposital.

em cada esquina

em cada esquina

de nova direção —

vento de inverno

longa viagem

ponho na mala

um livro de haicais —

longa viagem

*

a mariposa

na luzinha do teto —

noite na estrada

*

kinu o saku

biwa no na — sobre a página

pousa a mariposa

velho edredom

velho edredom

na corda do varal —

final de outono

物干しに古い毛布や秋の暮

monohoshi ni

furui mōfu ya

aki no kure

ponho as cobertas

ponho as cobertas 

sobre a cama aguardando

a noite fria

mas nada me protege

da que chega por dentro