domingo, 22 de dezembro de 2024

sábado, 14 de dezembro de 2024

sábado, 7 de dezembro de 2024

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

terça-feira, 29 de outubro de 2024

a brisa fresca

a brisa fresca 
serenamente o chá
é preparado

meu coração inquieto
como a água que ferve

domingo, 29 de setembro de 2024

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

sábado, 14 de setembro de 2024

a névoa é densa

a névoa é densa
do amanhecer até
cair a noite

a estrada nada mostra
além da direção

domingo, 1 de setembro de 2024

domingo, 25 de agosto de 2024

antes que vire

antes que vire
karakasa kozō 
varal de meias

[Em razão da exposição Universos Imaginários: Yōkai no Japão e Folclore no Brasil.]

terça-feira, 20 de agosto de 2024

a mariposa

a mariposa
dando voltas e voltas
na luz do teto

há uma que também
não consigo escapar

domingo, 11 de agosto de 2024

por mais de uma vida

por mais de uma vida
à correnteza do rio
a pedra resiste

para tanto falta tempo
para o tempo carregar

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

a luz do ocaso

a luz do ocaso
atravessando o verde
da maré calma

ainda reconheço
quando encontro teus olhos

sábado, 3 de agosto de 2024

não mais me fará

não mais me fará
a matéria que me faz
em outros outonos

é mais de mim que meus olhos
a lembrança desta lua

朝寒の霧の上より富嶽かな

asazamu no
kiri no ue yori
fugaku kana

*

fria manhã 
acima da neblina
o monte fuji

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Esta chaga fechou e não mais

Esta chaga fechou e não mais
deixa o sangue espalhar pelo quarto
ou arder como lava no peito
os olhares que há nos retratos.

Esta noite não mais pesa como
oceano profundo e calado
comprimindo com gigapascais
as lembranças até o colapso.

Mas retorna a crescer, como um fungo
no rejunte entre os pisos retorna
a crescer, uma angústia nos sulcos

da abismal cicatriz quando encontro
com você pela noite uma hora
e não mais quando acordo do sonho.

a rosa agora

a rosa agora
espalhada na grama 
vento de inverno

céu estrelado

céu estrelado 
também sobre o telhado
um par de olhos

domingo, 28 de julho de 2024

quinta-feira, 25 de julho de 2024

quarta-feira, 24 de julho de 2024

domingo, 21 de julho de 2024

a minha mão

a minha mão
paro — borboletinha
na maçaneta

os gatos sonecam

os gatos sonecam
estirados pelo chão 
tarde de verão

*

os gatos todos
cochilando na sala 
tarde de outono

*

a gata deita
em cima das patinhas 
tarde de inverno

*

sol de fim de tarde
de primavera no deck 
os gatos dormindo

quinta-feira, 18 de julho de 2024

quarta-feira, 17 de julho de 2024

domingo, 14 de julho de 2024

segunda-feira, 8 de julho de 2024

vidro embaçado

vidro embaçado
passo a mão e de novo
vidro embaçado

曇る窓手でこするまた曇る窓

kumoru mado
te de kosuru mata
kumoru mado

domingo, 7 de julho de 2024

Hisajo: 春の夜のねむさ押さえて髪梳けり

frescor da noite 
lutando contra o sono
eu me penteio

***

resistindo ao sono
da noite de primavera
penteio o cabelo

[alternativa]

domingo, 30 de junho de 2024

sexta-feira, 28 de junho de 2024

quarta-feira, 19 de junho de 2024

CANÇÃO EM SI

lá se vão, tragados pelos ciclos
lá se vão, com tanto e tanto sono
nossos corpos, filhos do carbono
nossas almas, filhas do silício

chuva gelada

chuva gelada 
a moreia da entrada
sem novas flores

sexta-feira, 14 de junho de 2024

AUTORRETRATO II

sob a lua e as estrelas
uma sombra que se esgueira

sob a luz do meio dia
um silêncio que caminha

no conjunto das memórias
uma poça que evapora

no altar das esperanças
um poema posto em chamas

como coisa deste mundo
só o azul do mar profundo

como todo um universo
céu de sóis feitos de ferro

quinta-feira, 13 de junho de 2024

quarta-feira, 12 de junho de 2024

terça-feira, 11 de junho de 2024

contemplo o céu

contemplo o céu
vagando meu olhar
entre as estrelas

talvez encontre o seu
pousado sobre a lua

segunda-feira, 10 de junho de 2024

CANÇÃO V

da terra que parti depois da infância
eu carrego na palma envelhecida
um punhado luzido da memória
mas não sei mais falar a sua língua

e sinto uma distância irreparável
e uma voz sussurrando nostalgias
num canto luminoso da memória
mas não sei mais falar a sua língua 

da terra que deixei na minha infância
toda a felicidade que sentia
é apenas um punhado de memória
e não sei mais falar a sua língua

sábado, 8 de junho de 2024

quarta-feira, 5 de junho de 2024

o céu inteiro

o céu inteiro
na bolha de sabão 
                ...blop

uma cartinha

uma cartinha
entregue no presente
de aniversário

em tanto tempo ainda
um resto de perfume

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Buson: 帛を裂琵琶の流や秋の声

rasgo de seda
a torrente do biwa 
a voz do outono


Esse haicai aparece no fim do haibun "Visita a Uji". Logo antes dele, Buson comenta um poema chinês de Po Chü-I, onde esse faz uma metáfora para o som do biwa (uma espécie de alaúde com cordas de seda e escrito como 琵琶). Aqui, no entanto, Buson está perto do Rio Uji, o qual recebe águas do Lago Biwa (que é também escrito como 琵琶). Isso abre as possibilidades de interpretação e a ambiguidade provavelmente é proposital.

em cada esquina

em cada esquina
de nova direção 
vento de inverno

longa viagem

ponho na mala
um livro de haicais 
longa viagem

*

a mariposa
na luzinha do teto 
noite na estrada

*

kinu o saku
biwa no na — sobre a página
pousa a mariposa

sábado, 1 de junho de 2024

velho edredom

velho edredom
na corda do varal 
final de outono

物干しに古い毛布秋の暮

monohoshi ni
furui mōfu ya
aki no kure

ponho as cobertas

ponho as cobertas 
sobre a cama aguardando
a noite fria

mas nada me protege
da que chega por dentro

sexta-feira, 31 de maio de 2024

quarta-feira, 29 de maio de 2024

cair da noite

cair da noite 
o vento e as andorinhas
vindo do norte

mas será que passaram
pela minha cidade

A partida semeia uma distância

A partida semeia uma distância
e a distância se nutre do silêncio
e, como quando morre uma esperança,
uma noite germina no meu peito

e carrego comigo a escuridão
de milhares de milhas de desterro
e nunca ter um pé firme no chão
sem o outro deixar o pavimento

e ter amigos sempre em despedida
e ter raízes só no movimento,
pois onde chego é sempre uma partida
e as raízes cresceram sobre o vento.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

sexta-feira, 24 de maio de 2024

e vamos juntos

e vamos juntos
para minha cidade 
vento de outono

古里へ一緒に行くや秋の風

furusato e
issho ni iku ya
aki no kaze

sábado, 18 de maio de 2024

COLEÇÃO DE CONCHAS

o pôr do sol
e a brisa vinda do mar
depois a lua crescente
e a conversa entre amigos
numa mesa de bar
o silêncio da madrugada
interrompido
pelo canto do sabiá
tudo isso junta
e guarda como junta
e guarda uma criança
as conchas que encontra na beira da praia
pois a vida também é
coleção de pequenas coisas
que aludem à eternidade

e na sacada

e na sacada
uma nova vizinha 
maria-bola

*

o sol raiando 
no canto da sacada
brilha uma teia

*

maria-bola
e formigas no chão 
tarde de outono

domingo, 12 de maio de 2024

sexta-feira, 10 de maio de 2024

sábado, 4 de maio de 2024

a decolagem

a decolagem
do avião — do canário
o canto mudo

*

emudeceu
o canário no poste 
um avião

a mariposa

a mariposa
também nos acompanha 
cheiro do chá

やって来るこの蛾詰め茶の香り

yattekiru
kono ga wa tsume ka
cha no kaori

a tempestade

a tempestade 
de poste em poste o cão
reaparece

quinta-feira, 25 de abril de 2024

segunda-feira, 22 de abril de 2024

domingo, 7 de abril de 2024

AUTORRETRATO

A juventude na face
não conta a idade prevista
pela adição sucessiva
de primaveras que partem

e a adição de primaveras
tampouco contabiliza
o quão pouco resta ainda
para o qual não seja tarde,

mas algum dia virão,
para a face e para as mãos
(como maçã que apodrece

do interior para a casca),
cada ruga e cada chaga
que acumula o coração.

domingo, 31 de março de 2024

sexta-feira, 29 de março de 2024

sexta-feira, 22 de março de 2024

domingo, 17 de março de 2024

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

sábado, 10 de fevereiro de 2024

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

NOTAS SOBRE A ESCRITA DE HAICAIS

Introdução

O objetivo central dessas notas é o de tentar organizar mais claramente (até mesmo para mim) quais decisões tomo ao escrever haicais. Seguindo esse propósito, elas são, primeiro, um recorte bastante limitado sobre algumas características do haicai tradicional e, segundo, um conjunto de considerações sobre como escrevo haicais dentro desse formato mais tradicional. É provável que eu mesmo vá discordar de algo escrito aqui mais tarde, mas isso seria verdade independente de quando essas notas fossem escritas.

A parte inicial dessas notas tem o objetivo de ser uma introdução bastante breve sobre o objetivo, a prática e as características principais do haicai tradicional. Nisso o que se busca é apenas estabelecer alguns aspectos básicos sobre o que é o haicai sem explorar cada ponto em profundidade. Já a segunda parte se trata de um conjunto de considerações sobre as escolhas que tomo ao escrever haicais seguindo essa linha mais tradicional. Essas considerações são fruto de minha experiência até aqui e não devem ser encaradas como a única forma de fazer essas escolhas.

Acredito que exemplos sejam sempre a forma mais eficiente de apresentar algo e por isso, na medida do possível, coloquei exemplos para ilustrar cada ponto apresentado.

Princípios e prática do haicai

·         Objetividade e poesia no haicai

古池や蛙飛びこむ水の音

furu ike ya
kawazu tobikomu
mizu no oto

*

no velho açude
com o salto da rã
o som da água

Com esses versos, Matsuo Bashō iniciou uma tradição poética que não só perdura até hoje como também transcendeu sua origem nipônica. Hoje é possível encontrar haicais sendo escritos em, provavelmente, qualquer língua e há até mesmo revistas especializadas em diversas delas.

O primeiro impulso de alguém acostumado com a tradição ocidental, muito mais lírica, é buscar alguma metáfora nos versos de Bashō, a qual daria algum sentido mais profundo ao haicai. Não há. Muito pelo contrário, esse haicai se propõe apenas a dizer aquilo que está escrito: uma rã pulou no açude e produziu um som na água. Nem a rã ou o açude ou a água ou o som querem dizer nada além do que está escrito. "Mas onde está a poesia então?", alguém pergunta. Está na forma de justapor esses elementos. Assim como na fotografia, o haicai é objetivo por princípio, mas a forma de apresentar elementos objetivos faz diferença (e é onde os elementos subjetivos são transmitidos). Na fotografia, a escolha na disposição dos elementos objetivos se dá pela escolha de ângulo, iluminação, foco, composição, etc... De forma análoga, justapor os elementos objetivos no haicai requer diversas escolhas e é no conjunto dessas escolhas que está a poesia.

·         Momento haicaístico e o propósito do haicai

O frio numa manhã de inverno, uma flor desabrochando, o pôr do sol, a lua cheia, o barulho da chuva, o som das buzinas numa avenida engarrafada, etc. são eventos que nos dão impressões sensoriais e também alguma experiência emocional. Sempre que um evento (ou a conjunção de eventos) despertar uma clara e contemplativa experiência sensorial e emocional ligada a ele, esse é um momento haicaístico e o haicai será um registro desse momento.

Assim, embora o conteúdo escrito do haicai deva ser inteiramente objetivo, o propósito do haicai é transmitir uma experiência subjetiva: a experiência sensorial e emocional do momento haicaístico. A arte de escrever haicais é a de conseguir transmitir pelo menos uma parte dessa experiência. No entanto no haicai não cabe descrever a experiência subjetiva, como, por exemplo, dizer que se sente triste ou feliz ao contemplar a lua, e sim dispor os elementos objetivos que causaram essa experiência de forma que as sensações e emoções sejam sugeridas. Todos os detalhes técnicos e formais do haicai, os quais ligados às características poéticas dele, são justamente sobre encontrar as maneiras mais eficientes de realizar essa tarefa. Fazendo uma simplificação grosseira, a dimensão objetiva é transmitida pelo conteúdo escrito enquanto a subjetiva é transmitida pela forma.

Nos haicais (traduzidos) a seguir seguem algumas interpretações sobre quais sensações e emoções eles tentam transmitir.

por este caminho
onde ninguém passa mais —
ocaso de outono

Bashō

Aqui há uma clara sensação de solidão enquanto Bashō está em uma de suas peregrinações ao longo do Japão. O último verso, “ocaso de outono”, embora de forma não totalmente trazida na tradução, enfatiza ainda mais o tom melancólico desse haicai.

vento de outono
circula na montanha —
o som dos sinos

Chiyo-ni

De imediato, a sensação transmitida é a do som de sinos balançados pelo vento, enfatizando ainda mais a presença desse. Mas, além disso, para Chiyo-ni, enquanto monja budista, o som dos sinos pode ter tido mais significados, já que, dentre outras funções, sinos são usados como um chamado para a meditação nos templos.

da machadada
aroma inesperado —
pinheiro seco

Buson

O aroma exalado pela árvore (o original não especifica que era um pinheiro) ao ser golpeada pelo machado deve ter sido mais intenso do que Buson esperava. Ainda mais para uma árvore que já estava seca. O haicai tenta ao menos transmitir a ideia dessa sensação olfativa inesperada. Talvez até mesmo fazer com que se consiga imaginar o aroma.

ondulações
sob a lua que nasce —
capim-dos-pampas

Shiki

Aqui Shiki está apresentando um cenário onde se tem o capim-dos-pampas balançando por conta de alguma brisa enquanto é iluminado pela lua. O capim-dos-pampas, por ser branco, deve se destacar bem ao luar e o haicai tenta transmitir um pouco da beleza desse cenário.

·         Praticando o haicai

Como já dito, o haicai vem de uma impressão sensorial e emocional, porém tal tipo de experiência vem da observação mais atenta das coisas ao redor. Inicialmente é necessário tomar a iniciativa de prestar mais atenção aos acontecimentos, os quais poderão resultar na escrita de haicais, mas logo essa prática se torna um hábito e o haicai é, antes de tudo, um hábito.

Quanto à escrita do haicai propriamente dita, há quem diga que o haicai deve ser escrito durante o momento haicaístico, mas nenhum dos grandes mestres adotava essa prática. Pelo contrário, costumavam inclusive reescrever haicais anos depois de sua primeira versão. Ou seja, o haicai, para ser "autêntico", não necessariamente precisa ser escrito no momento em que ele é inspirado. Basta um rascunho ou até mesmo só um lembrete; o trabalho de lapidar pode ser deixado para mais tarde.

O haicai tradicional

O haicai tradicional possui várias características formais que vão além da métrica e número de versos. Abaixo estão listadas as principais delas e suas adaptações para o português.

·         Título

Não tem.

·         Rima

Rima não é um recurso muito comum em japonês e raramente aparece em haicais. Não há, portanto, necessidade de rimas no haicai e alguns dirão até mesmo que elas devem ser evitadas (eu incluso). Mas rimas internas, aliterações e assonâncias possuem respaldo na forma tradicional do haicai e podem ser uma ferramenta valiosa, pois a repetição de sons pode ser muito efetiva em transmitir alguma sensação. Por exemplo, no haicai de Bashō "kare eda ni/ karasu no tomarikeri/ aki no kure", a repetição do fonema "k" evoca um pouco o canto do corvo (karasu).

·         Métrica

Em japonês o haicai tradicionalmente é escrito seguindo o esquema métrico 5-7-5, mas a língua japonesa conta sons de maneira inteiramente diferente de como fazemos em português e isso se deve às particularidades do idioma japonês que não podem ser trazidas para o português. Sendo assim, toda adaptação do esquema métrico japonês estará "errada" de certa forma. O que é feito mais comumente aqui no Brasil é simplesmente seguir o esquema 5-7-5, mas considerando sílabas métricas. Porém, o verso do haicai deve ser conciso e muitas vezes o esquema 5-7-5 tem "espaço demais", o que acaba levando à introdução de palavras supérfluas na composição.

Como o esquema 5-7-5 é longo demais na maioria das vezes, alguns têm proposto que o mais adequado seria adotar o esquema 4-6-4 e, de fato, minha experiência é a de que esse esquema métrico funciona muito bem na maioria dos casos. No entanto há expressões e palavras que se encaixam perfeitamente em 5-7-5 e se restringir ao esquema 4-6-4 pode acabar eliminando essas expressões do repertório (ou forçar a fazer uso menos eficiente delas). Vamos pegar um exemplo: chuva de verão. Há cinco sílabas poéticas nessa expressão, a qual é perfeita para a composição de haicais, pois é um kigo de verão (discutido mais adiante) e também muito bem incorporada no linguajar cotidiano. O uso estrito do esquema 4-6-4 levaria a empregar essa expressão apenas no segundo verso, o que alguns experimentos logo mostrarão ser um uso difícil e desajustado.

Considero que a sensação de brevidade e concisão no haicai seja o que realmente importa e ambos os esquemas métricos podem alcançar esse efeito de forma muito parecida. Nos haicais abaixo, por exemplo, o primeiro possui esquema 4-6-4 e o segundo 5-7-5, porém essa diferença quase não se percebe durante a leitura.

porta de vidro —
assisto à mariposa
pousar na lua

*

chuva de verão —
um morro de cada vez
desaparecendo

Ambos os esquemas, a meu ver, podem conviver como opções na escrita de haicais.

·         Kireji

O haicai tradicional não é uma sentença dividida em três partes. Há sempre um corte que separa o haicai em dois pedaços (geralmente entre o primeiro e segundo verso ou entre o segundo e terceiro verso). Esse corte (kire) é fundamental para o efeito poético do haicai, pois é a partir dele que e é deixada para leitor a tarefa de fazer a relação entre os elementos justapostos.

Em japonês esse corte é feito através de palavras específicas, tais como ya, yo, zo, nu, kana, keri ..., as quais chamadas, no contexto do haicai, de palavras de corte (kireji). Essas palavras na verdade funcionam como tipos específicos de pontuação e nem sempre possuem algum correspondente imediato em nosso idioma. A adaptação feita em português foi o uso de diversas pontuações (".", "!", ":", ";", "...", "—", etc...) para realizar essa separação. Não há nenhuma regra sobre quais pontuações são mais adequadas para realizar o corte e isso dependem muito do gosto de cada haicaísta. Nos exemplos abaixo, o uso do travessão é uma preferência minha (por considerar ser uma opção mais neutra e versátil), mas outra pontuação poderia ser posta no lugar.

o fino chuvisco
umedecendo o canteiro —
caracóis no muro

*

uma garça pesca
na beira do mar estático —
círculos na água

*

vento nordeste —
uma sombra de nuvem
sobe no morro

Note que a conexão entre as duas partes não é explicada no haicai, mas pode ser inferida. Essa justaposição de imagens ou eventos, a meu ver, é o principal aspecto que contribui para o efeito poético do haicai.

·         Kigo

A cerejeira floresce na primavera e o crisântemo no outono. Pelo menos é assim no Japão e um haicai que contenha cerejeira (sakura) será classificado como de primavera enquanto um haicai mencionando crisântemo (kiku) será classificado como de outono. "Cerejeira" e "crisântemo" são exemplos de kigo (palavras de estação). Essas palavras (ou expressões) fazem com que a estação do ano esteja sempre implícita ou explicitamente presente no haicai tradicional e é um de seus componentes fundamentais. Há quem considere até mesmo indispensável para classificar um poema como realmente sendo um haicai. Abaixo seguem algumas traduções como exemplos, onde os kigo são destacados em negrito.

encosta na linha
de uma vara de pesca —
lua de verão

Chiyo-ni

*

gela meus lábios
quando tento falar —
vento de outono

Bashō

*

e quem sabe seja
o meu último endereço —
dois metros na neve

Issa

*

desde o sol no oeste
até a lua no leste —
flores de canola

Buson

Neste último haicai, "flores de canola" é um kigo de primavera.

            O kigo é uma forma de tanto enfatizar a presença de elementos naturais no haicai como também a transitoriedade do momento relatado. Assim como todas as características de uma estação vêm e vão com a passagem dela, o momento relatado no haicai também vem e se vai.

O recurso do kigo, porém, exige uma classificação da fauna, flora, clima e até festividades de acordo com a estação do ano e, embora isso tenha sido de fato feito no Japão, a mesma tarefa foi feita de forma ainda muito limitada no Brasil (a única obra nesse sentido ainda é “Natureza - Berço do Haicai” de Masuda Goga e Teruko Oda). Isso torna o emprego do kigo num haicai brasileiro ainda um pouco difícil e limitado.

Existem kigo óbvios como "chuva de verão" (o qual já apareceu num haicai acima), mas o Brasil é enorme e possui diferenças notáveis de fauna, flora e clima. A tarefa de catalogar os kigo para todo o Brasil é impossível desde o princípio; seria pelo menos necessário subdividir em regiões com mais homogeneidade nesses aspetos para, então, tentar fazer uma catalogação.

O kigo, no entanto, permite criar um efeito poético que é próprio do haicai. Isso não só por conta de contextualizar o haicai em alguma estação do ano, mas também pela intertextualidade que ele proporciona. Por exemplo, há centenas de haicais com "chuva de verão" e isso cria uma relação entre eles: todos eles são sobre situações presenciadas diante desse mesmo fenômeno meteorológico. Uma vez que se comece a ler haicais, a recorrência dos kigo se torna evidente e haicais com um mesmo kigo acabam se comunicando.

Técnica

O que exporei aqui não deve ser visto como algum conjunto de regras e imagino que muitos haicaístas irão discordar em alguns pontos (ou vários). No entanto é um conjunto de direcionamentos básicos que acabei desenvolvendo e utilizo ao tentar compor meus haicais. Talvez sejam úteis para mais alguém mesmo que discordando de minhas preferências. Ao menos pode ajudar alguém a ter mais consciência sobre essas escolhas e, assim, ser capaz de fazê-las de forma intencional ao tentar potencializar a efetividade do haicai em transmitir as sensações e emoções pretendidas.

Devo salientar que o conjunto de direcionamentos apresentados não são todas as considerações que faço ao escrever haicais. Porém as demais considerações caem em duas categorias: as que são particulares de cada haicai e as que não sei ainda uma maneira de expressar de forma generalizada.

·         Composição de cenário

A dama-da-noite desabrochou numa noite de lua cheia e atraiu uma mariposa com seu perfume. Há vários elementos neste cenário que acabei de colocar e sequer há espaço no haicai para incluir todos eles. Ao contrário do que normalmente acontece com outras formas de poemas, onde a dificuldade principal está em criar (cenários, metáforas, etc.), no haicai a dificuldade está em subtrair. Deve-se escolher dois ou três elementos do cenário e focar neles. Por mais que pareça haver uma perda nesse processo, ele é necessário, pois um haicai que tente acomodar elementos demais de um cenário não conseguirá fazer com que nenhum deles tenha o devido peso para transmitir aquilo que se pretende. Ou seja, no cenário que apresentei, para escrever um haicai, se deve selecionar quais elementos focar e desenvolver em torno deles. Uma possibilidade seria focar na flor e na lua, deixando o resto de fora. Um exemplo de haicai com esse foco seria

no branco das pétalas
da flor da dama-da-noite —
lua de verão

Se poderia também escolher a flor e a mariposa, donde um haicai possível é

a mariposa
aceitou o convite —
dama-da-noite

De certa forma, neste último, o perfume também está presente no cenário, porém de forma implícita.

Em suma, assim como numa boa fotografia, o haicai deve ter poucos elementos (dois ou três) onde concentrar a atenção. Essa escolha dos elementos é a primeira parte na escrita propriamente dita do haicai e, às vezes, a mais difícil. Após se fazer essa escolha, o trabalho se torna o de encontrar a melhor forma de dispor eles a fim de transmitir as sensações e emoções pretendidas.

·         Métrica e ritmo

Acima já disse que considero tanto o esquema métrico 4-6-4 como o 5-7-5 boas opções ao adaptar a forma do haicai tradicional e não há muito mais a acrescentar sobre isso. É de minha preferência escrever dentro desses dois esquemas porque a regularidade na métrica permite estabelecer mais facilmente um ritmo, o qual para mim é uma das partes fundamentais do haicai enquanto forma poética.

Dentro da questão do ritmo, no entanto, há alguns detalhes que levo em consideração e talvez seja relevante falar. Dependendo se o esquema é 4-6-4 ou 5-7-5, as considerações são ligeiramente diferentes, então vamos começar com o esquema 4-6-4.

4-6-4:

Considerando primeiro o verso do meio, de seis sílabas métricas, tento evitar duas situações: ter mais de duas sílabas tônicas e começar o verso com uma sílaba tônica. Além disso, a primeira sílaba tônica no verso deve ser preferencialmente a segunda ou a terceira (com menos preferência). Evito que seja a quarta e nunca deve ser a quinta. No exemplo abaixo, tanto há três sílabas tônicas no segundo verso (em negrito) como também ele começa com uma. Embora tenha sido a melhor solução que encontrei para esse haicai em particular, é perceptível que o ritmo sofre um pouco. Com sete sílabas, uma solução melhor surgiria: "somente a estrela da tarde", mas tentar reescrever o haicai no esquema 5-7-5 acabaria piorando os outros dois versos.

tanabata
a estrela da tarde
compareceu

Sobre os versos de quatro sílabas, há essencialmente três opções: começar ambos com sílabas tônicas, começar um deles com sílaba tônica e não começar nenhum deles com sílaba tônica. A segunda opção é a que considero ser a melhor na maioria dos casos, sendo que o verso separado pelo corte tem preferência em começar com uma sílaba tônica, pois isso o destaca e enfatiza o corte (especialmente se for o último verso). A primeira opção também considero muito boa, mas tenho uma preferência pela segunda. Já a terceira opção, a meu ver, é a mais difícil de gerar um resultado satisfatório e geralmente será a opção subótima em relação às outras duas.

Nos exemplos abaixo, as sílabas tônicas estão em negrito. Conforme dito, considero a segunda opção a melhor em termos de ritmo e a terceira a mais difícil de ter um efeito ótimo.

Primeira opção:

vento nordeste —
uma sombra de nuvem
sobe no morro

*

resto de sol
espalhado no céu
nuvens esparsas

Segunda opção:

porta de vidro —
assisto à mariposa
pousar na lua

*

densa folhagem —
do alvoroço das aves
somente o som

Note que o ritmo ficaria um pouco pior se o primeiro verso fosse "folhagem densa".

*

sinal vermelho
sem luz para avisar
ninhos de barro

*

um breve instante
de mar iluminado —
noite chuvosa

Terceira opção:

a calmaria —
um v de mergulhões
também no mar

*

dependurado
atrás do sushiman
o monte fuji

Embora tenha dito que considero a terceira opção a menos atrativa, os dois exemplos acima são haicais que gosto. Ritmo é um dos fatores que influenciam o efeito geral do haicai, mas está longe de ser o único. Há vezes em que uma pequena mudança sem alterar o sentido do haicai melhora o ritmo (como no caso da troca de "folhagem densa" por "densa folhagem" logo acima), mas há casos em que isso não é possível de ser feito e os outros fatores podem ter um peso maior. Buscar melhorar o ritmo é bom, mas não se deve forçar ele.

5-7-5:

Por questões de concisão nos versos do haicai, tenho preferência pelo esquema 4-6-4 em vez do 5-7-5 na grande maioria das vezes, mas o esquema 5-7-5 não só foi a forma adotada inicialmente por autores brasileiros (como Guilherme de Almeida) como também foi a forma adotada por imigrantes e descendentes de imigrantes japoneses. Ou seja, é a adaptação mais "oficial" e é raro encontrar alguma referência onde o esquema 4-6-4 seja ao menos mencionado.

As considerações que tenho para fazer são semelhantes às que fiz para o esquema 4-6-4, mas há um pouco mais de variedade.

Sobre o verso do meio, de sete sílabas métricas, se torna ainda mais importante evitar que se comece com uma sílaba tônica. Certamente o ritmo ficará desajeitado com o verso começando com ela. Preferencialmente a primeira sílaba tônica deve ser ou a segunda ou a terceira, de forma semelhante ao caso do esquema 4-6-4. Porém, diferentemente do esquema 4-6-4, não é problemático que o verso do meio aqui tenha três sílabas tônicas e considero os ritmos 2,4,7 e 2,5,7 igualmente bons. No caso de haver apenas duas sílabas tônicas o ritmo preferencial se torna o 3,7.

Para os versos de cinco sílabas métricas deve-se evitar que haja três sílabas tônicas, mas um ritmo 1,3,5 pode funcionar. Além disso,  tanto os ritmos 1,5, o 2,5 ou o 3,5 funcionam em diversos casos, mas com a ressalva de que, se um dos versos tem ritmo 3,5, o outro não deve repetir. Pela mesma razão já expressa no caso anterior (esquema 4-6-4), o ritmo 1,5 é particularmente bom para o verso separado pelo corte. Abaixo seguem alguns exemplos onde considero que os ritmos ficaram satisfatórios.

voa da manhã
sol diluto no connuo
entre céu e mar

*

tão logo no asfalto
logo voltam a voar
folhas amarelas

*

a noite realça
o pacio iluminado —
silêncio e fumaça

*

céu da madrugada —
somente a janela acesa
no prédio vizinho

Uma última consideração sobre ritmo, é evitar duas silabas tônicas consecutivas independente do verso.

·         Adjetivos

Quando se usa algum adjetivo num haicai, se deve sempre fazer a pergunta "o quanto isso acrescenta para o cenário?". Se o adjetivo for redundante ou acrescentar pouco, provavelmente apenas se está estendendo uma descrição além do necessário.

Por exemplo, ao escrever "o mar azul", o quanto esse "azul" acrescenta ao cenário? A não ser que no haicai essa cor seja contrastada com outra (pode ser com o vermelho de algum navio, por exemplo), provavelmente está trazendo pouca informação a mais, pois o mar normalmente é imaginado como azul.

Um problema um pouco diferente acontece quando se usa mais de um adjetivo para o mesmo substantivo, por mais que eles sejam relevantes. Em "o mar cinza e turbulento" os dois adjetivos estão acrescentando algo sobre o mar, mas é uma descrição longa para os padrões de um haicai. Nesse caso, como o mar turbulento normalmente é acinzentado, se poderia omitir o "cinza" na descrição sem grandes perdas, mas, independentemente disso, a busca de alternativas que evitem a dupla adjetivação geralmente é o melhor caminho.

Agora, indo além do uso adjetivos para descrições objetivas, há também casos onde o adjetivo introduz algum elemento subjetivo, o qual deveria ficar fora do haicai (pelo menos da parte escrita). Por exemplo, se se escreve o verso "a bela rosa", o "bela" acrescenta uma impressão subjetiva sobre a rosa e isso não cabe no haicai. Se a rosa é bela, a rosa sozinha é suficiente para transmitir essa informação. A impressão subjetiva deve apenas ser sugerida. Assim, ao invés de escrever

manhã de sol —
no jardim desabrocha
a bela rosa

se poderia escrever

manhã de sol —
a rosa no jardim
desabrochando

Há, no entanto, aparentes exceções que até mesmo são kigo. Por exemplo, "noite gelada" é um kigo de inverno e "gelada", a princípio, é uma sensação subjetiva. Porém, esse "gelada" é objetivo o suficiente no sentido de que, para quase todos os seres humanos, a temperatura experimentada é baixa demais. Com isso se poderia retrucar que, no exemplo acima sobre a "a bela rosa", a rosa também é bela para quase todos os seres humanos e seria objetivo o suficiente acrescentar esse adjetivo. Entretanto, se esse é o caso, "bela" é redundante e a rosa sozinha basta.

Na mesma linha de acrescentar elementos subjetivos, também temos adjetivações que criam metáforas, como "lua melancólica", "céu flamejante", "noite opressiva", etc... Fazer associações dessa forma é comum em gêneros mais líricos, mas é desajeitado no haicai. Conforme já enfatizado, o haicai busca ser objetivo no conteúdo escrito. As impressões e associações mais subjetivas devem ser deixadas como sugestões através da forma com que se dispõe os elementos objetivos.

·         Verbos

Um haicai é sobre o momento presente e a primeira observação a ser feita é que, via de regra, os verbos devem ser conjugados no presente. Há situações onde conjugações no passado ou futuro (raro) podem fazer sentido, mas sempre se deve ter em mente que o tempo no haicai é o presente e, independente do acontecimento ter começado no passado ou estar se projetando para alguma conclusão, o que está escrito deve se referir ao acontecimento enquanto está acontecendo.

Fora essa consideração mais geral e básica, há algumas outras que são pertinentes também. Um haicai com múltiplas ações (verbos) dificilmente irá funcionar da forma pretendida, pois tenta dar atenção a acontecimentos demais (isso faz parte da escolha de cenário). Um ou dois verbos (e às vezes nenhum) costuma ser número ideal de verbos. Isso pode ser observado nos exemplos já apresentados de haicais.

Além disso, há ações que podem ser implicadas sem realmente estarem escritas. Por exemplo, em

o som da chuva
cessando — do silêncio
a corruíra

está implícito que se trata do canto da corruíra. Algo semelhante ocorre em

tarde de chuva —
também para o bueiro
flores de hibisco

onde é implicado que as flores de hibisco estão indo para o bueiro. Deixar alguma ação implícita pode ser uma das ferramentas a serem utilizadas para atingir o efeito poético desejado.

·         Kigo

Atualmente a única kigologia que temos no Brasil ainda é "Natureza - Berço do haicai" de Masuda Goga e Teruko Oda, conforme já mencionado, e ela é limitada mesmo se considerarmos apenas as regiões sul e sudeste. Isso dificulta o emprego do kigo em haicais brasileiros. Porém, apesar disso, na medida que há a oportunidade, sempre dou preferência para o uso de um kigo. No entanto também considero palavras e expressões que, embora não tenham sido catalogadas, claramente deveriam figurar como kigo. Por exemplo, hibisco é uma flor que não está catalogada na referida kigologia, mas deveria ser um kigo de primavera ou verão.

A lista apresentada em "Natureza - Berço do haicai" pode ser um bom guia para o emprego do kigo, mas, na medida que algo tenha presença mais clara numa estação, pode-se considerar esse algo um kigo mesmo não estando ainda na lista. Alguém no futuro pode se dar ao trabalho de juntar os novos kigo desses haicais e organizar numa kigologia.

Além disso, como já dito, o kigo não apenas situa o haicai em uma estação do ano, mas também cria uma intertextualidade entre haicais que utilizam esse mesmo kigo. Esse é um efeito poético próprio do haicai que sempre vale a pena tentar explorar.

·         Concisão

Algo que já deve ter ficado claro até aqui é que toda palavra que nada acrescenta ou pouco acrescenta ao sentido do haicai deve ser dispensada. Ao menos assim vejo e tento escrever tendo isso em mente, afinal, a concisão é um fator importante no haicai.

Escrevendo ou não dentro de um esquema métrico, o verso do haicai não deve ser curto apenas de acordo com a contagem de sílabas métricas, mas deve também dar a sensação de ser curto durante a leitura. Tomemos como exemplo disso uma tradução diferente que fiz do "haicai da rã" e comparar com a tradução de outro haicai de Bashō utilizando o mesmo esquema métrico.

uma rã que salta
na beira do velho açude —
breve som da água

*

corvo que repousa
sobre o galho ressequido —
ocaso de outono

Na primeira tradução as palavras "beira" e "breve" sequer possuem correspondência no original e também pouco acrescentam ao sentido do haicai. São palavras supérfluas e estão ali quase que apenas completando a métrica. Na segunda, no entanto, não é possível subtrair alguma palavra sem também subtrair algo relevante no sentido do haicai. Ambas as traduções possuem esquema métrico 5-7-5, mas a segunda é concisa enquanto a primeira não a é.

Além disso, na primeira tradução o segundo e terceiro versos possuem três sílabas (poéticas) tônicas, o que contribui para a sensação de que são mais longos do que os correspondentes dois últimos versos na segunda tradução, onde só há, em cada verso, duas sílabas tônicas. Não necessariamente a contagem de sílabas tônicas decidirá se o verso parece mais ou menos longo, mas é um indicativo.

Porém as palavras "beira" e "breve" talvez ainda sejam as principais razões para esses dois últimos versos na primeira tradução parecerem mais longos. Não apenas por acrescentarem sílabas métricas (e tônicas), mas por alongarem as descrições dos elementos principais, "velho açude" e "som da água", acrescentando detalhes (desnecessários) ao cenário.

Tendo essas considerações em mente, é um bom exercício, após rascunhar o haicai, tentar tirar algumas palavras e verificar se o sentido ainda se mantém. Às vezes algum artigo ou adjetivo é dispensável. Também às vezes o haicai fica muito melhor quando se tira algum conectivo e se realiza o corte (kire).

·         Justaposição

Conforme já mencionado, o haicai tradicional possui um corte, uma separação, e muito de seu efeito poético vem da justaposição entre as partes separadas. Sempre busco manter esse elemento e, de acordo com minha experiência, a versão de um haicai mantendo um corte claro costuma ser melhor que a versão onde o corte não está presente.

No entanto, embora o haicai não deva ser explicativo, tampouco pode ser obscuro ou enigmático. Longe disso, o haicai é uma impressão objetiva de algum evento ou cenário, não uma charada. Dado que há esse corte e que o leitor deve "conectar os pontos", alguém pode questionar "E se o leitor não conectar os pontos?" Isso é perfeitamente possível de acontecer por diversas razões e pode ou não ser um problema do haicai, mas se deve ter em mente que esse é um risco necessário, pois, mesmo que apenas uma fração dos leitores consiga "conectar os pontos", essa fração poderá ter algum acesso ao momento haicaístico que deu origem ao haicai, enquanto, com um haicai explicativo, que sequer será haicai, ninguém terá tal experiência. O desafio, portanto, é evitar que a conexão seja sutil demais, ao ponto de ninguém (ou quase ninguém) conseguir decifrar, e, ao mesmo tempo, evitar que a conexão seja tão direta que o efeito da justaposição dos elementos se perca. Muito da arte de escrever haicais está na busca do ponto ótimo entre esses dois extremos em cada haicai. Não há método exato para essa busca.

Os haicais a seguir estão em ordem crescente de "distanciamento" entre as partes separadas pelo travessão. O segundo é o que considero ter chegado mais próximo de um ponto ótimo.

cai da tarrafa
e corre para o mar —
siri-azul

A parte separada no último verso apenas responde o que caiu da tarrafa: o siri-azul. A relação é bastante direta, mas ainda assim a separação faz o efeito ser melhor do que seria ao escrever "o siri-azul/ cai da tarrafa/ e corre para o mar".

o meu cardápio
no outro lado da praça —
vento de outono

Aqui a conexão é um pouco menos direta que no caso anterior. É inferível que a razão do cardápio estar no outro lado da praça seja por causa do vento, mas isso não é explicitamente dito e é o fato de não estar explicitamente dito que possibilita esse haicai ter algum efeito poético. Qualquer versão onde a conexão ficasse explícita reduziria o haicai a uma descrição banal de um evento pouco interessante.

a mariposa
aceitou o convite —
dama-da-noite

Esse é um caso onde a conexão se dá por conta de algum conhecimento mais específico. Mariposas são polinizadoras da dama-da-noite e o perfume dessa flor justamente tenta atrair elas. Ainda tenho dúvidas se esse haicai foi bem-sucedido. Talvez tenha passado do ponto ótimo e ido para o lado do "obscuro".

a garça pesca
na beira da lagoa —
céu estrelado

Não há nenhuma relação causal entre as duas partes do haicai. Se trata da justaposição de dois elementos que compõem um cenário. Particularmente considero esse tipo de haicai o mais difícil de "fazer funcionar".

·         Corte deslocado

Normalmente o corte do haicai é feito entre o primeiro e segundo verso ou entre o segundo e o terceiro. Porém há exemplos de haicais onde o corte é realizado no meio do segundo verso e isso pode ser usado para criar tensão ou fazer uma transição mais dinâmica entre dois eventos. Por exemplo, no haicai de Chiyo-ni

som de cachoeira
atenuando — no topo
canto da cigarra

o corte no meio do segundo verso cria uma transição dinâmica entre o som da cachoeira ficando mais fraco e o canto da cigarra, que pode ser escutado no topo. Fica claro que se está seguindo um caminho indo para o topo da cachoeira sem que isso seja explicitamente dito.

Utilizando-se exatamente da mesma técnica, escrevi o haicai

nuvens na serra
avermelhando — um grilo
outro e mais outro

onde fica claro que os grilos estão começando a cantar à medida que anoitece. Note também que está implícito o fato de se tratar do canto dos grilos.

Normalmente essa não é a melhor forma de escrever um haicai e é difícil de fazer funcionar. Porém pode ser a técnica adequada nas situações em que, no haicai, se pretende realizar a transição entre dois eventos.

Conclusão

Conforme dito logo no início, a poesia do haicai vem do conjunto de escolhas feitas ao dispor elementos objetivos de um cenário a fim de transmitir sensações e emoções. O objetivo dessas notas era expor como faço parte dessas escolhas, ou seja, apresentar de forma mais organizada como lido com algumas das características do haicai tradicional e também quais aspectos valorizo mais na hora de escrever.

Porém algo que fica muito claro ao tentar seguir esses direcionamentos é que há vezes em que alguns deles podem ser conflitantes ou insuficientes. Em especial, nem sempre é fácil encaixar o ritmo do verso como se gostaria. Nisso entram considerações de custo-benefício que não tenho (pelo menos não ainda) um método explícito de como fazer. Assim, o que foi apresentado é o conjunto de diretrizes básicas (no sentido literal de ser a base), mas muitas vezes há ajustes mais finos a serem feitos num haicai para realmente alcançar sua melhor forma.